O USO DE DOCUMENTO FALSO PARA OBTENÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE IMPOSTO DE RENDA. SITE DO IBCCRIM. 19.02.09
Segue abaixo artigo publicado no site do IBCCRIM em 19/02/2009.
O uso de documento falso para obtenção de restituição de imposto de renda
Gabriel Bertin de Almeida
Uma maneira comum de suprimir ou reduzir o imposto de renda devido dá-se através da declaração de pagamento das chamadas despesas dedutíveis, que influenciam a base de cálculo desse tributo. As despesas médicas, fisioterápicas, com dentistas, psicólogos, seja do contribuinte, seja de seus dependentes, assim como as despesas com educação ou com pagamento de pensão alimentícia, entre outras, são as mais comuns (entre as dedutíveis).
A Receita, ao exercer sua atividade de fiscalização, detectando eventuais anormalidades, costuma pedir os documentos que comprovem o pagamento das referidas despesas. O contribuinte, então, com a pretensão de mostrar a veracidade de sua declaração, muitas vezes apresenta os recibos ou as notas fiscais respectivas.
Não raro, o próprio contribuinte ou seu contador falsifica tais documentos. Em outros casos, o recibo da despesa declarada é comprado de alguém que presta serviços que permitem o abatimento, às vezes antes mesmo da declaração. Quando o documento é materialmente falso, a ilicitude é comprovada com maior facilidade. Quando há compra de recibo de profissional que de fato poderia ter prestado o serviço, sendo o falso ideológico, a comprovação não é tão simples.
Quando o Fisco percebe antecipadamente a possível fraude, a restituição sequer é feita. O valor fica retido até o esclarecimento da situação. Em outras ocasiões, descobre-se o ardil apenas depois da restituição do tributo, ocasião em que será necessária a cobrança judicial, via execução fiscal, ressalvada a hipótese de pagamento espontâneo.
Além de ilícito fiscal, os mencionados atos configuram crime. Por isso, o Fisco aciona os órgãos de persecução criminal, para que tomem as medidas que entenderem cabíveis.
Quanto à classificação do crime praticado nesses casos, tem-se notado na prática forense tipificações diversas. A maior parte das decisões diz que o crime é o de sonegação fiscal, que nos parece ser a tipificação correta. Porém, muitos julgados dizem que o crime seria o de estelionato contra a Receita.
O famoso tipo previsto no artigo 171 do Código Penal diz o seguinte: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.” A pena é de 1 a 5 anos, e multa, com o acréscimo de até 1/3, nos termos do § 3º, já que a infração é praticada contra a Receita, entidade de direito público.
A conduta daquele que falsifica e usa documento falso, ou daquele que apenas usa tal documento, para o fim de obter restituição de tributo, de fato preenche, em tese, o tipo do estelionato. Há vantagem ilícita (a restituição), há prejuízo alheio (da Receita/União Federal; se a restituição não chega a ser levantada porque descoberta a falsidade, o crime seria tentado), há o meio fraudulento (o uso do documento falso) e há indução ou manutenção em erro (já que a Receita processa a restituição com base em informação inverídica).
O tipo básico da sonegação fiscal, por sua vez, está previsto no artigo 1º da Lei n. 8.137/90, que diz ser crime contra a ordem tributaria suprimir ou reduzir tributo, mediante algumas condutas previstas em seus incisos, tais como “prestar declaração falsa” (inciso I), “fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos” (inciso II), “falsificar ou alterar nota fiscal [...] ou qualquer outro documento” (inciso III) e “utilizar documento que saiba ou deva saber ser falso” (inciso IV). A pena é de 2 a 5 anos, e multa.
A conduta daquele que falsifica e usa documento falso, ou do que apenas utiliza o referido documento, para o fim de obter parte do tributo de volta, também preenche o tipo do crime de sonegação. Obter restituição de tributo significa reduzir tributo. Quaisquer dos incisos mencionados, individualmente, são preenchidos pela hipótese de trabalho ora em discussão. A má redação do tipo, com diversos incisos abertos, que representam meios pelos quais a sonegação é executada, permite esse tipo de sobreposição. Quase sempre mais de um deles é, ao mesmo tempo, preenchido.
De fato, tanto o estelionato quanto a sonegação podem ser praticados através do uso de documentos falsos que induzam a erro. A descrição típica de ambos, nesse sentido, é clara. Estando preenchidos os tipos dos artigos 171 do Código Penal e do artigo 1º da Lei n. 8.137/90, qual deles prevalece? Como se resolve a antinomia?
A solução para o presente caso é conhecida: aplica-se o princípio da especialidade. O tipo de estelionato é norma geral, enquanto o crime de sonegação é norma especial. O delito de sonegação pode ser perpetrado de maneira similar àquele previsto no artigo 171 do Código Penal, hipótese em que se aplica a lei especial.
Nem poderia ser diferente, pois o que se pretende quando se usa nota fiscal de prestação de serviços médicos não efetivamente usufruídos, ou algo similar, é pagar menos imposto, ou, mais especificamente, reduzir o imposto pago por retenção na fonte ou pago antecipadamente de outra forma. Daquele tributo recolhido, durante o ano anterior, parte é devolvida. Esse mecanismo de restituição do tributo pago certamente não altera o tipo penal aplicável à hipótese. A finalidade continua sendo a mesma: reduzir tributo. Por isso, aplica-se a lei especial.
Vejamos alguns precedentes sobre o tema:
“O conflito aparente de normas se resolve pela aplicação do princípio da especialização, de modo que a lei posterior e específica sobre delitos tributários praticados contra a Fazenda Pública deve ser aplicada em lugar da norma constante do Código Penal, genérica para os crimes contra o patrimônio.” (STJ – 6ª T. RHC 1506, rel. Min. Carlos Thibau, j. 10/02/1992, DJ 30/03/1992)
“[...] A legislação do Imposto de Renda Pessoa Física prevê a retenção mensal pela fonte pagadora do montante estimado do tributo, segundo as alíquotas vigentes, e, por ocasião da declaração de ajuste anual, a apuração do saldo do imposto a pagar ou o valor a ser restituído. Ambas as hipóteses (pagamento ou restituição) encontram-se vinculadas ao cálculo do imposto devido, que é efetuado, em síntese, mediante a soma do total dos rendimentos percebidos no período de um ano, descontadas as despesas dedutíveis permitidas em lei. Nessa perspectiva, quando o contribuinte, para não pagar além do que foi já foi recolhido, presta informações falsas que levam a Receita Federal a registrar como verdadeiras deduções inidôneas, não há dúvida de que pratica conduta fraudulenta destinada a suprimir dos cofres públicos o imposto de renda. Da mesma forma, quando a fraude resulta na devolução de valores pelo Fisco, em realidade, tal só acontece em decorrência da redução do imposto retido na fonte, cujo montante integral deveria ter permanecido em poder da Fazenda Pública, não fosse o sucesso da empreitada criminosa. Logo, eventual conduta fraudulenta praticada na declaração de ajuste, amolda-se ao tipo previsto no art. 1º da Lei 8.137/90, eis que presente o fim específico de suprimir ou reduzir tributo devido, caracterizando-se de forma mais apropriada o delito de sonegação fiscal e não estelionato. [...]” (TRF/4ª Região, RSE 2005.71.03.003341-1, Oitava Turma, Relator Élcio Pinheiro de Castro, D.E. 23/05/2007).
“[...] A fraude praticada visando a supressão ou redução de tributos constitui conduta que se enquadra no tipo penal do artigo 1º da Lei nº 8.138/90, prevalecendo essa norma incriminadora frente a contida no artigo 171 do Código Penal em decorrência da aplicação do princípio da especialidade (precedentes)” (TRF/4ª Região, HC 2007.04.00.039658-3, Oitava Turma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado, D.E. 12/12/2007).
“[...] 1. Se o contribuinte comete falsidade ideológica com o propósito específico de suprimir ou reduzir tributo, obtendo, assim, vantagem indevida, resulta que tanto o crime de falsidade como o estelionato (crimes-meio) são pressupostos do crime de sonegação fiscal (crime-fim) restando por esse absorvidos. [...] O recebimento da restituição do imposto de renda, nesse contexto, não acarreta a configuração do delito de estelionato, de maneira autônoma. É dizer, o agente que se utiliza de documentos falsificados para obter maior restituição, mediante o abatimento da despesas inexistentes, visa, na realidade, à supressão ou redução de tributos.[...]” (TRF/3ª Região, HC nº 2005.03.00.0066311-2/SP, 5ª Turma, Relator Juiz Higino Cinacchi, public. no DJU em 14/03/2006).
No mesmo sentido, a doutrina: “O conflito aparente de normas que ocorre na prática de fato que constitui, em tese, ao mesmo tempo os crimes de estelionato e de sonegação fiscal resolve-se pelo princípio da especialidade, de modo que se aplica a legislação específica sobre delitos tributários praticados contra a Fazenda Pública.” (MIRABETE, Julio Fabrinni. Manual de Direito Penal, II vol., 20ª ed., Atlas, p. 308).
A referida e não rara modificação do tipo especial de sonegação fiscal pelo de estelionato parece decorrer do atual tratamento dado àquele crime, mais benéfico, sobretudo quanto à necessidade de encerramento do procedimento administrativo fiscal prévio, à possibilidade de pagamento do tributo, que extingue a punibilidade, além do uso do princípio da insignificância com parâmetros elevados.
Como se sabe, no crime de sonegação fiscal exige-se o fim do procedimento administrativo levado a efeito pelo Fisco. Trata-se, para alguns, de condição objetiva de punibilidade. Para outros, de causa de atipicidade da conduta. De todo modo, seja qual for a solução adotada, o fato é que não pode haver desdobramento criminal a respeito de pretenso ilícito criminal-fiscal se não houver crédito definitivamente constituído. Logo, também no caso de uso de documento falso para obtenção de restituição de imposto de renda a condição deve estar presente: "Tendo o Ministério Público de 1ºgrau denunciado contribuinte do IRPF que utilizou recibos fornecidos por odontóloga por uso de documento falso, objetivando reduzir a massa tributável, correta a decisão judicial que rejeitou a denúncia, por considerar que o falso se exauria na sonegação fiscal, sem mais potencial ofensivo, e a esta faltava a condição de procedibilidade, por inexistir procedimento administrativo fiscal, constituindo o crédito tributário. [...] A hipótese configuraria o crime do art. 1º, I d Lei n. 8.137/90 que consiste na supressão de IRPF por meio de declaração ideologicamente falsa. Falta condição de procedibilidade - ou elementar típica de natureza normativa -, que é a constituição definitiva de crédito tributário". (TRF/5ª Região. - 1ª T. - RSE 2007.83.00.019326-0 - rel. Paulo Machado Cordeiro - j. 10.07.2008 - DJU 09.08.2008)
O pagamento do tributo também interfere no crime fiscal, na medida em que extingue sua punibilidade. Sendo assim, basta que contribuinte pague o valor referente ao que lhe foi restituído, com os acréscimos legais, para que fique livre das conseqüências penais de seu ato.
Por fim, é sabido que os critérios de aplicação do princípio da insignificância ao crime fiscal têm sido mais generosos, pelo uso, por analogia, do valor mínimo abaixo do qual a procuradoria da receita não precisa cobrá-lo judicialmente (R$10.000,00, nos termos do artigo 20 da 10.522/2002). Embora o Superior Tribunal de Justiça venha utilizando o critério de R$100,00, com base no parágrafo 1º do artigo 18 da Lei 10.522/2002, posto que esse é o parâmetro para o cancelamento do tributo, o valor de R$10.000,00 parece um critério mais sólido, acolhido inclusive pelo STF (HC 95089). No crime de estelionato, por sua vez, a aplicação do princípio da insignificância é mais restrito, usualmente em parâmetros significativamente inferiores.
Assim, como no crime fiscal aplicam-se atualmente institutos que evitam a punição, é visível que o Ministério Público, por vezes, ao classificar o crime como sendo o de estelionato, visa impedir um desfecho mais favorável ao contribuinte. Alguns juízes, sobretudo na primeira instância, também parecem seguir o mesmo caminho. Trata-se de uma “revolta silenciosa”, que objetiva “democratizar” o Direito Penal, já que o crime fiscal, assim como os demais crimes econômicos, são em regra praticados por pessoas de melhor status financeiro.
Por vezes, quando a tentativa de obter a restituição falha, e o crime é apenas tentado, alguns juízes têm inclusive alterado a classificação jurídica ao receber a denúncia pelo crime de estelionato (tentado), incluindo também o crime de uso de documento falso (art. 304 CP), em concurso. Com isso, ao adiantar a emendatio libelli, evitam a suspensão condicional do processo. É que o estelionato na forma tentada permite a aplicação do instituto despenalizador, enquanto que a adição do segundo crime impediria que o procedimento tivesse o mesmo fim, já que a pena mínima somada é superior a 1 ano: “[...] Alicerçado nesses fundamentos, recebo a denúncia de fls. 93/94, mas com fulcro no art. 383, CPP, corrijo sua capitulação jurídica, já que a imputação ali formulada se trata de tentativa de estelionato e uso de documento falso (artigo 304, do Código Penal), o que impede a concessão do benefício da suspensão condicional do processo, em face da pena, em tese, cominada [...]. (Vara Criminal Federal de Londrina-PR, Ação Penal n. 2007.70.01.001861-7, fl. 06 verso).
A motivação é, inequivocamente, a mesma “democratização” do Direito Penal e a discordância em relação ao tratamento dado aos crimes fiscais, que seria excessivamente benéfico ao contribuinte.
Nessa última hipótese, ao erro na capitulação do crime-fim (trata-se de crime de sonegação, e não de estelionato), soma-se o equívoco em relação a não aplicação do princípio da consunção. Mesmo que possível fosse a emendatio libelli no recebimento da denúncia, em prejuízo do acusado, sabe-se que o uso de documento falso, sem maior potencial ofensivo, enquanto crime-meio que é, resta absorvido, seja pela sonegação, seja pelo estelionato. Há inclusive, há muito tempo, súmula (nº. 17) do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”. Este continua sendo o entendimento daquele Tribunal (STJ – 6ª T. RHC 22913, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 29/04/2008, DJ 06/05/2008; STJ – 5ª T. HC 75599, rel. Min.Felix Fischer, j. 21/06/2007, DJ 08.10.2007).
Em conclusão, nota-se que o tratamento atualmente dado ao crime fiscal traz alguns efeitos colaterais. Com o fim de impedir o trancamento da ação penal, ou a extinção da punibilidade, ou a suspensão condicional do processo, temos visto a alteração da classificação jurídica do crime ou a adição de novo crime, expedientes estes visivelmente ilegais, utilizados como reação ao tratamento mencionado.
Voltar para Artigos