JOHN RAWLS E O UTILITARISMO. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA N. 233. SP: RT, JUL/DEZ 2009, PP. 295-308. 06.03.10
John Rawls E O UTILITARISMO
Gabriel Bertin de Almeida[1]
Resumo: é sabido que John Rawls, em Teoria da Justiça, tem por finalidade contrapor-se ao utilitarismo, que, diz, “não leva a sério as diferenças entre as pessoas”. O presente texto tem o objetivo de discutir essa alegada contraposição, sendo possível perceber a existência de surpreendentes afinidades entre a teoria de Rawls e o utilitarismo.
Palavras-chave: utilitarismo; teoria da justiça; John Rawls.
Abstract: It is well known that John Rawls, in A Theory of Justice, wants to offer a stance against utilitarianism, which, he claims, "does not take seriously the distinction between persons". This text discusses the limits of this opposition, and shows that there are surprising affinities between Rawls's theory and utilitarianism.
Key-words: utilitarianism; theory of justice; John Rawls.
Sumário: 1. Introdução; 2. A Teoria da Justiça; 3. Uma alternativa ao utilitarismo; 4. As semelhanças entre a teoria rawlsiana e o utilitarismo; 5. Conclusão; 6. Bibliografia.
1. Introdução.
O termo “utilitarismo” não é utilizado de maneira unívoca e precisa. É certo, porém, que foi difundido depois de passar a ser utilizado por Jeremy Bentham, e, um pouco depois, por John Stuart Mill, designando seus sistemas de ética normativa. Foi utilizado por seus discípulos, firmando-se ao longo do tempo.
O utilitarismo foi, durante muito tempo, a teoria moral e política predominante. Atualmente, ainda é bastante difundida. Para Amartya Sen, é “a teoria ética dominante – e, inter alia, a teoria da justiça mais influente – há bem mais de um século” (SEN, 2002:77). Porém, como informa H. L. A. Hart, pode-se notar o abandono da “velha crença, em outros tempos amplamente aceita, de que alguma forma de utilitarismo, se ao menos conseguíssemos descobrir a forma certa, deve captar a essência da moralidade política” (HART, 1979). Nesse contexto, é sabido que John Rawls, com sua Uma Teoria da Justiça, de 1971, foi um dos primeiros a propor uma sólida alternativa ao utilitarismo.
Apesar dessa clara intenção de contrapor-se aos utilitaristas, talvez seja possível encontrar algumas afinidades entre a teoria de Rawls e o utilitarismo em geral. Este é o objetivo do presente texto.
2. Uma Teoria da Justiça[2].
A teoria da justiça de Rawls costuma ser rotulada como liberal-igualitária. É liberal porque pretende garantir a tolerância e a liberdade individual. É igualitária porque também valoriza a igualdade econômica e social. Essas duas facetas da teoria estão presentes nos dois famosos princípios de justiça de Rawls:
“a. Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor eqüitativo garantido.
b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade.” (RAWLS, 2000:47/48)
Rawls atribui a esses princípios uma escala de prioridade léxica (a tem prioridade sobre b; e b, primeira parte sobre b, segunda parte), o que permitiria a coexistência de concepções de vida diversas.
Seu conceito de justiça procedimental preocupa-se com a justiça institucional, e não a pessoal ou individual, sendo seu objeto primário a chamada estrutura básica da sociedade, isto é, “a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens da cooperação social” (RAWLS, 1999:6).
Os princípios e sua “prioridade léxica” constituem a chamada “concepção especial” de justiça. A “concepção geral”, por sua vez, possui a seguinte idéia central: “todos os bens primários sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases do respeito de si mesmo – devem ser distribuídos igualmente, a menos que uma distribuição desigual de qualquer um ou de todos estes bens seja vantajosa para os menos favorecidos” (RAWLS, 1999:54). Concepção especial e geral, portanto, não se contradizem: em ambas a desigualdade só é permitida se beneficia os que se encontram na pior situação.
Segundo Will Kymlicka, a prioridade da liberdade não significa que qualquer espécie de liberdade prevalecerá. A preocupação de Rawls diz respeito a determinados direitos:
“É importante observar que Rawls não está endossando um princípio geral de liberdade de tal modo que qualquer coisa que possa ser plausivelmente chamada liberdade deva receber prioridade avassaladora. Mais propriamente, ele está dando proteção especial ao que chama de ‘liberdades básicas’, termo que usa para designar os direitos-padrão civis e políticos reconhecidos nas democracias liberais – o direito de votar, de concorrer a cargos públicos, de concorrer a cargos públicos, de ter um devido processo adequado, de livre discurso, de mobilidade etc. (1971: 61).”(KYMLICKA, 2006:68)
Os dois princípios e a prioridade dos mencionados direitos básicos seriam aceitos em uma posição original de igualdade, em que ninguém conheceria sua situação familiar, financeira e mesmo pessoal, pois ignoraria também quais seriam suas habilidades e talentos. Esse desinteresse decorrente da falta de conhecimento da própria situação determinaria que alguém não pudesse razoavelmente discordar desses princípios, sendo a posição original o status quo ideal para essa decisão, pois o véu de ignorância garantiria que homens racionais decidissem em situação equitativa, em que todos estariam em situação semelhante e ninguém poderia fixar regras para beneficiar sua própria situação (RAWLS, 1999:11). Se as liberdades individuais estão garantidas, convivendo harmonicamente as diferentes concepções de vida, arranjos institucionais devem ser utilizados para viabilizar o ideal igualitário que também se faz presente. Diversos fatores podem causar desigualdade: a discriminação em razão de sexo ou cor, ou as diferenças culturais, de origem familiar e de renda, ou ainda a inteligência e os talentos individuais de cada indivíduo. Cada um desses fatores deve ser mitigado de determinada maneira, tema a respeito do qual não pretendemos discorrer no presente texto.
Do que foi brevemente exposto, vê-se que Rawls pretende tratar as pessoas como iguais sem remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que trazem prejuízo a alguém. Se alguém, utilizando, por exemplo, seu talento, beneficia de alguma forma a todos, a desigualdade resultante é permitida. Como esclarece Kymlicka, as “desigualdades são permitidas se aumentam minha parcela inicialmente igual, mas não permitidas se, como no utilitarismo, elas invadem a minha parcela eqüitativa. Esta é a única e simples idéia no âmago da teoria de Rawls” (KYMLICKA, 2006:67).
3. Uma alternativa ao utilitarismo.
No prefácio de TJ, Rawls diz que “em grande parte da filosofia moral moderna, a teoria sistemática predominante tem sido alguma forma de utilitarismo” (RAWLS, 1999:xvii). Um dos motivos dessa predominância seria “a longa linhagem de brilhantes escritores” dessa corrente. Os críticos do utilitarismo, diz Rawls, notaram que essa teoria confrontava nossos sentimentos morais, mas não acreditava terem sido “capazes de construir uma concepção moral sistemática e viável que se opusesse a esse princípio” (RAWLS, 1999:xvii). Por isso, parecemos sempre forçados a escolher entre o utilitarismo e o intuicionismo. Mesmo afirmando que “não há certeza de que possamos fazer algo melhor”, conclui que “isso não é motivo para que não tentemos” (RAWLS, 1999:xviii).
O intuicionismo, diz Rawls, é “a doutrina segundo a qual há um conjunto irredutível de princípios básicos que devemos pesar e comparar perguntando-nos qual equilíbrio, em nosso entendimento mais refletido, é o mais justo” (RAWLS, 1999:30). Tais princípios básicos, porém, podem chocar-se, apontando diretrizes contrárias, sem qualquer critério de prioridade capaz de decidir pela predominância de um deles. Sobre a crítica de Rawls ao intuicionismo, Kymlicka diz o seguinte:
“O intuicionismo é uma alternativa insatisfatória ao utilitarismo, pois, embora realmente tenhamos intuições anti-utilitárias em questões específicas, também queremos uma teoria alternativa que confira sentido a estas intuições. Queremos uma teoria que mostre por que estes exemplos específicos suscitam nossa reprovação. O “intuicionismo”, porém, nunca vai além dessas intuições iniciais, ou mais fundo que esse estágio, para mostrar como elas estão relacionadas ou para oferecer princípios que lhes dêem base e estrutura.” (KYMLICKA, 2006:64)
Os alvos declarados de Rawls são, portanto, o utilitarismo e o intuicionismo. Como nosso foco é a relação de Rawls com o utilitarismo, não trataremos mais detidamente do intuicionismo. De qualquer modo, o meio de superar tais alvos é a tradicional teoria do contrato social, que seria “superior” enquanto teoria explicativa da justiça (RAWLS, 1999:xviii).
Ao tratar do utilitarismo, Ralws cita Sidgwick, que entende ter a concepção mais clara e acessível:
“A idéia principal é a de que a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfações obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros.” (RAWLS, 1999:20)
Ao mencionar uma concepção clássica do utilitarismo, Rawls demonstra estar particularmente preocupado com uma das características dessa corrente: o chamado “ranking pela soma”, definido na passagem acima, diz que assim como o bem-estar de uma pessoa decorre de uma série de satisfações experimentadas durante a vida, o bem-estar da sociedade decorre da satisfação dos desejos de numerosos indivíduos a ela pertencentes.
Rawls de fato trata mais amplamente do utilitarismo clássico, mas menciona também o chamado utilitarismo de média, afirmando que ambos “devem frequentemente ter conseqüências práticas similares” (RAWLS, 1999:165). Diz que o utilitarismo clássico propõe a maximização das satisfações individuais (RAWLS, 1999:20), enquanto o utilitarismo de média “direciona a sociedade para maximizar não o total, mas a utilidade média” (RAWLS, 1999:140). Nenhuma dessas concepções seria preferível, na posição original, à justiça como eqüidade. Nessa situação, seu argumento procura mostrar que o utilitarismo seria rejeitado por todos.
Embora o utilitarismo não leve com freqüência à uma situação de extrema desigualdade, como Rawls reconhece, “as perdas de algumas pessoas devem, em princípio, sempre ser superadas pela maior importância dos ganhos maiores de outras pessoas” (SCHEFFLER, 2005:429). Esse comprometimento dos utilitaristas clássicos com o ranking pela soma deriva da extensão para a sociedade como um todo do princípio da escolha racional de uma só pessoa (RAWLS, 1999:24). O espectador imparcial é a figura que facilita esse caminho, já que sua “visão da cooperação social é a conseqüência de se estender à sociedade o princípio da escolha para um único ser humano, e depois, fazer a extensão funcionar, juntando todas as pessoas numa só através dos atos criativos do observador solidário e imparcial” (RAWLS, 1999:24). Como “muitas pessoas se fundem numa só” (RAWLS, 1999:24), Rawls diz que o utilitarismo “não leva a sério as diferenças entre as pessoas” (RAWLS, 1999:164).
Enquanto Rawls sustenta que os princípios de justiça são objeto de um consenso original, os utilitaristas (clássicos) procuram explicá-los através do princípio da escolha de um homem só. Na posição original, se as partes fossem altruístas perfeitos, isto é, pessoas cujos desejos conformam-se à aprovação de um espectador imparcial, o utilitarismo clássico poderia ser adotado (RAWLS, 1999:164).
A justiça como equidade define a imparcialidade do ponto de vista dos próprios litigantes, diferentemente do utilitarismo, que, como mencionado, a define a partir de um espectador imparcial compreensivo. Por isso, Rawls diz que “a falha da doutrina utilitarista está em confundir impessoalidade com imparcialidade” (RAWLS, 1999:166). A impessoalidade do espectador compreensivo difere da imparcialidade do sujeito que age sob o véu de ignorância.
No utilitarismo há também uma espécie de véu de ignorância, porém bem mais fino, em que as pessoas possuem informações sobre si próprias e sobre os outros, seus desejos e interesses. Só “não sabem” sua colocação na sociedade. Agem, diria Rawls, impessoalmente. Apesar de não saberem sua situação, esse véu de ignorância mais fino “leva as pessoas a ‘jogar as probabilidades’ na esperança de que estão entre aquelas que aprovam a dominante posição majoritária e os valores” (FREEMAN, 2005:12). Essa diferença entre a impessoalidade dos utilitaristas e a imparcialidade da justiça como equidade explicaria situações como a abaixo descrita por Samuel Freeman:
“Deveríamos impor apenas um fino véu de ignorância sobre os habitantes de uma tradicional sociedade hierárquica, em que a arrasadora maioria está satisfeita com o status quo e poderia alegremente negar a eles mesmos e aos outros liberdade de religião e de discurso ou o direito de votar? Alguns comunitaristas e utilitaristas devem pensar assim, pois em suas visões a informação sobre as condições existentes e concepções de bem são relevantes para decidir princípios básicos de justiça. “ (FREEMAN, 2005:12)
Quanto ao utilitarismo de média, em que não importa a soma, mas a média, Rawls diz que essa teoria seria a de um indivíduo único racional sem aversão ao risco. Segundo Scheffer, três são os motivos que tornam a justiça como eqüidade preferível, na posição original, a essa modalidade de utilitarismo: “(1) as partes não têm base para confiar na espécie de raciocínio probabilístico que poderia amparar a escolha da utilidade média, (2) seus dois princípios assegurariam às partes um mínimo satisfatório, e (3) o princípio da utilidade média pode ter conseqüências que as partes poderiam não aceitar” (SCHEFFLER, 2005:432).
Apesar da sensível diferença entre os argumentos que apontam os defeitos do utilitarismo clássico e do utilitarismo de média, o problema de fundo é o mesmo: a maximização das satisfações, seja pelo total, seja pela média, justificaria que alguns não tivessem um mínimo de liberdades básicas, o que seria inaceitável. A justiça como equidade prioriza as liberdades básicas por serem moralmente mais significantes que outras. Portanto, não podem ser limitadas para o fim de aumentar a felicidade geral ou média. Logo no início de TJ Rawls já deixa isso claro:
“Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros.[...] Portanto, numa sociedade justa, as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis” (RAWLS, 1999:3).
A rápida explicação que Rawls dá à afirmação de que o utilitarismo é uma teoria teleológica, enquanto a justiça como equidade é deontológica, ajuda a esclarecer porque esta seria preferida àquela. A justiça como equidade é deontológica porque não interpreta o justo como maximizador do bem (RAWLS, 1999:26). Nela, “o conceito de justo precede ao de bem” (RAWLS, 1999:28), pois os princípios de justiça limitam desde o início o que deve ser respeitado. Logo, as concepções de bem limitam-se nas regras de justiça.
O utilitarismo, por sua vez, é uma teoria teleológica, pois define o que é justo através do bem, isto é, de uma concepção de vida (que prega a maximização da utilidade). Diz Álvaro de Vita que:
“Essa concepção, no caso do utilitarismo, é vazia de conteúdo próprio, já que resulta da geração de preferências e desejos de fato dos agentes, sem que a motivação ou validade dessas preferências e desejos sejam colocadas em questão. Uma vez que essa agregação tenha sido de alguma forma realizada em determinada sociedade, isso nos dá a concepção de boa vida dessa sociedade, definindo-se então a maximização do bem assim concebido como o que é direito fazer. O status da justiça é apenas derivativo.” (VITA, 1993:13-14)
Portanto, Rawls enfatiza sua oposição ao utilitarismo e constrói sua teoria da justiça com o fim declarado de opor-se a essa corrente. Seu caráter deontológico, no sentido por ele atribuído, seu esforço em evitar as desigualdades severas em tese permitidas pelo utilitarismo e o véu de ignorância mais espesso mostram a mencionada oposição.
4. As semelhanças entre a teoria rawlsiana e o utilitarismo.
Apesar de Rawls ser bastante explícito quanto à sua oposição ao utilitarismo, não são poucas as críticas de que a teoria rawlsiana tem vários pontos de contato com as teorias utilitaristas. Essas afinidades, sempre acompanhadas de severas discordâncias, levam alguns, como Samuel Scheffler, a afirmar que Rawls “tem uma atitude complexa frente ao utilitarismo” (SCHEFFLER, 2005:427).
Uma dessas críticas à teoria rawlsiana é feita por Robert Nozick em seu Anarchy, State and Utopia. Para Nozick, o princípio de diferença de Rawls, que “representa, com efeito, um acordo para a distribuição de talentos naturais como um ativo, e para compartilhá-los em seus benefícios” (RAWLS, 1999:87), conflita com sua acusação aos utilitaristas, de que não levam a sério as diferenças entre as pessoas (NOZICK, 1974:228).
O princípio de diferença trata os talentos das pessoas como uma espécie de recurso comum, cujos benefícios devem de certa forma ser compartilhados, já que quem foi favorecido pela natureza só pode tirar proveito deles se melhorar a situação dos desafortunados. Para Rawls, “ninguém merece sua capacidade natural maior e nem tem direito a um ponto de partida mais favorável na sociedade” (RAWLS, 1999:87).
Por tratar os talentos das pessoas, algo que é indissociável delas, como algo não merecido, Nozick diz que Ralws “não respeita suficientemente e não leva em conta o fato de que cada um é uma pessoa separada, que essa é a única vida que ele tem” (NOZICK, 1974:33). Essa afirmação está no contexto da explicação de sua teoria da titularidade, que defende uma distribuição natural de recursos, talentos e ganhos provenientes do exercício legítimo desses talentos. Há, em Nozick, um direito natural a tudo aquilo que adquirimos legitimamente, através de nosso trabalho ou por sucessão. Por isso, rejeita que talentos naturais sejam vistos como recursos a compartilhar compulsoriamente.
A deliberação, na posição original, sob o véu de ignorância, é feita por sujeitos que foram despidos de suas características mais importantes, que os distinguem dos demais e que formam sua identidade pessoal. Nozick, então, redireciona ao próprio Rawls sua crítica aos utilitaristas, afirmando que este faz uma “representação depreciada dos seres humanos” (NOZICK, 1974:214).
Uma crítica similar é feita por Michael Sandel em Liberalism and the limits of Justice. Nessa obra, Sandel diz que Rawls tem uma teoria da pessoa em que seus talentos são meramente contingenciais; são atributos não-constitutivos do ser, ao invés de essenciais (SANDEL, 1985:78). Não haveria, por isso, segundo Rawls, violação das pessoas em razão da desconsideração de seus talentos na posição original.
Sandel acredita, porém, como lembra Scheffler, que a teoria rawlsiana sofre de “incoerência”, “e não pode, portanto, municiar Rawls de uma resposta satisfatória para a acusação de que ele também é culpado de negligenciar as distinções entre pessoas” (SCHEFFLER, 2005:440).
Como alternativa a essa indevida cisão da identidade pessoal, feita por Rawls, Sandel propõe uma concepção “intersubjetiva da pessoa”, em que “a descrição relevante do eu deve englobar mais do que um único indivíduo empiricamente individualizado” (SANDEL, 1985:80). Isso torna possível que as pessoas beneficiem-se dos talentos dos outros sem violar a distinção entre elas. Não porque os talentos não façam parte das pessoas, como diz Rawls, mas porque as pessoas não são, “no sentido relevante, distintas de mim” (SCHEFFLER, 2005:441). Essa concepção comunitarista da identidade pessoal serviria, no entender de Sandel, para evitar o “desapossamento da pessoa” que entende haver em Rawls.
Essas passagens mostram, portanto, que a crítica de Rawls ao utilitarismo, de que essa teoria não leva em conta a distinção entre as pessoas, pode ser atribuída à sua teoria da justiça, que também não levaria em conta tais diferenças, ao fazer uma “representação depreciada dos seres humanos” ou ao propor o “desapossamento da pessoa”[3].
Além dessa possível “identidade” entre os utilitaristas e Rawls, Scheffler aponta outras três: a) o caráter “sistemático” e “construtivo” de ambas; b) a concordância de ambas as teorias sobre o fato de que os preceitos do senso comum de justiça têm apenas status “derivativos” e devem ser vistas como subordinadas a um critério superior; c) ambas possuem um caráter holístico (SCHEFFLER, 2005:442).
A primeira, o caráter sistemático e construtivista, tem por finalidade, no caso dos utilitaristas, evitar o que Bentham nomeia de princípios do asceticismo e da simpatia ou antipatia[4], e, no caso de Rawls, evitar o que chama de intuicionismo. O intuicionismo não possui critério de prioridade que decida um conflito entre diversos princípios de justiça. É, ainda, alternativa insatisfatória ao utilitarismo, pois nunca vai além de intuições iniciais para mostrar como elas estão relacionadas ou para oferecer princípios mais sólidos que lhes dêem base e estrutura (KYMLICKA, 2006:64).
Os utilitaristas são construtivistas porque adotam um único critério para solucionar problemas relacionados a critérios de justiça: a maximização do bem-estar, seja pela soma total, seja pela média, seja através de algum outro modelo de utilidade. Rawls, por sua vez, é construtivista porque deixa de lado a utilidade e adota dois princípios e uma escala de prioridades entre eles.
A segunda característica comum apontada por Scheffler deriva da primeira: os preceitos do senso comum de justiça devem subordinar-se a um ou mais princípios superiores. É sabido que em Rawls seus dois princípios formam “o critério superior correto” (RAWLS, 1999:268). Para os utilitaristas, esse critério superior é o princípio da utilidade. É essa a intenção de Bentham quando, negando os princípios do asceticismo e da simpatia ou antipatia, afirma a necessidade de um “critério externo”: “Todos eles recorrem à multidão de artifícios inventados com o propósito de fugir à necessidade de ir em busca de uma norma externa e de fazer o leitor acatar a convicção ou a opinião do autor como uma razão válida por si mesma. As expressões são diversas, porém o princípio é idêntico.” (BENTHAM, 1972:16).
Por fim, o terceiro ponto de afinidade entre Rawls e os utilitaristas é o fato de que ambos são holísticos. Depois de sugerir uma simpatia de Rawls pelos utilitaristas, Scheffler nota que os dois princípios de justiça do primeiro formam um sistema de justiça procedimental pura em que, dada uma estrutura básica justa, qualquer distribuição de bens dela resultante é igualmente justa. Logo, considerações sobre a justiça dependem de algo mais amplo:
“Uma distribuição não pode ser julgada isoladamente do sistema do qual resulta ou do que os indivíduos fizeram de boa-fé sob a luz das expectativas estabelecidas. Se for perguntado, em tese, se uma distribuição de determinado estoque de coisas para certos indivíduos que conhecem seus desejos e preferências é melhor que outra, então simplesmente não há resposta a essa pergunta. A concepção dos dois princípios não interpreta o problema primário da justiça distributiva como um de ‘allocative justice’” (RAWLS, 1999:76-77).
Os utilitaristas, por sua vez, embora não proponham um critério procedimental puro ou uma determinada estrutura básica, também fazem seu critério de justiça depender de um contexto mais amplo. Importa a maximização da satisfação, total ou média:
“A justiça ou injustiça de atribuir um benefício particular a alguém dependerá, para os utilitaristas, de que haja qualquer outro meio de alocação que levasse a uma distribuição com maior utilidade (total ou média). Isso dependerá, para Rawls, de que a atribuição seja parte de uma ampla distribuição produzida pela estratura básica, de acordo com seus dois princípios. Nesse sentido, tanto Rawls quanto o utilitarista têm uma visão holística da justiça distributiva: ambos insistem em que a justiça de uma particular distribuição de benefícios sempre depende – direta ou indiretamente – da justiça da distribuição mais ampla de benefícios e obrigações na sociedade.” (SCHEFFLER, 2005:445)
Em ambos, portanto, a questão da justiça não pode ser decidida em decorrência de uma ação isolada. São, nesse sentido, holísticas.
A esses pontos em comum entre Rawls e os utilitaristas, mencionados por Scheffler, deve-se ainda acrescentar um outro, não menos relevante: ambos são consequencialistas. O consequencialismo, como já mencionado acima, faz com que uma ação, regra ou instituição seja julgada pelas consequências que produz. No utilitarismo, importa o excedente de prazer. Em Rawls, importam as conseqüências dos arranjos institucionais, de acordo com seus princípios de justiça. Não é tolerável qualquer diferença, mas apenas as que de alguma forma beneficiam os que estão na pior situação:
“O liberalismo igualitário é uma modalidade de reflexões normativas consequencialistas. Mas agora estamos percebendo os limites desse consequencialismo: se o arranjo institucional básico satisfaz as exigências da justiça, quaisquer resultados, estados de coisa e perfis distributivos que sob ele se produzam deverão também ser considerados justos. Esse é o ponto central da idéia de justiça procedimental pura aplicada à estrutura básica da sociedade.” (VITA, 1999:52)[5]
Rawls, quando explica em que sentido sua teoria é deontológica (em oposição ao teleologismo utilitarista), dizendo que esse adjetivo aplica-se à sua teoria porque interpreta o justo como maximizador do bem, salienta que não se trata de uma teoria não-consequencialista, pois “todas as doutrinas éticas que merecem nossa atenção levam em conta as conseqüências” ao julgar as ações, concluindo que uma que não fizesse isso “seria simplesmente irracional” (RAWLS, 1999:26).
5. Conclusão.
É, portanto, interessante notar que uma teoria como a de Rawls, que possui o objetivo declarado de opor-se ao utilitarismo, tenha tantos pontos em comum com esta. Trata-se de mais uma situação em que se nota a dificuldade de rotular uma teoria sem que se façam inúmeras considerações adicionais.
Há, ainda, um último aspecto que vale à pena mencionar e que serve para diminuir as diferenças entre as teorias utilitaristas e o liberalismo-igualitário, que é o fato de que aquelas teorias não são, pelo menos em boa parte de suas versões, teorias egoístas ou não-igualitárias por excelência.
Em Mill, por exemplo, o utilitarismo assume um lado mais igualitário. No texto Utilitarismo, critica aqueles que pensam que o utilitarismo “torna os homens frios e poucos solidários” (MILL 1998:151). Apesar de utilizar a famosa ideia de soma total de felicidade, está mais preocupado com sua distribuição, visível em diversas passagens.
Embora continue a defender que a ação correta é aquela que produz maior felicidade, passa a adotar um critério menos preciso e mais amplo para defini-la (ou para não defini-la com exatidão), sem o mesmo grau de detalhamento do racionalismo exacerbado de Bentham[6]. Como diz Berlin, Mill
“Continuava a professar que a felicidade era o único fim da existência humana, mas sua concepção sobre o que concorreria para ela transformou-se em algo muito distinto do que defendiam seus mentores, pois passou a valorizar, sobretudo, não a racionalidade ou o contentamento, mas a diversidade, a versatilidade, a plenitude da vida [...]
[...] sem a tolerância, as condições da crítica racional, da condenação racional, são destruídas. Portanto, defende a razão e a tolerância a qualquer custo” (BERLIN, 2000:XI e XXIII).
No Utilitarismo, vê-se que Mill dedica vários parágrafos à tese de que um sujeito menos egoísta e mais solidário, características presentes em um “espírito cultivado”, encontra a felicidade com mais facilidade. “Todo ser humano criado corretamente mostra que, em graus distintos, são possíveis afetos privados genuínos e um interesse sincero pelo bem público” (MILL 1998:145). Diz que em um mundo imperfeito como o em que vivemos, a maior virtude de um homem é servir à felicidade do outro pelo absoluto sacrifício de si mesmo (MILL 1998:147).
A crítica de Rawls, apesar de dirigir-se também a Mill, atinge as versões mais egoístas do utilitarismo. Uma teoria como a de Mill esforça-se em mostrar que a distribuição também tem a sua relevância: “...a moralidade utilitarista efetivamente reconhece nos seres humanos o poder de sacrificar seus maiores bens pessoais pelo bem de outros. Apenas se recusa a admitir que o sacrifício em si mesmo seja um bem” (MILL 1998:148).
Embora todas as aproximações mencionadas acima não escondam as distinções entre as teorias utilitaristas e a rawlsiana, que são também evidentes, a ideia sugerida por Rawls, de contradição absoluta, ou ao menos muito acentuada, é bastante discutível.
6. Bibliografia.
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[1] Advogado. Professor da PUCPR (campus Londrina). Mestre e doutorando em filosofia pela FFLCH/USP.
[2] A partir de agora referida simplesmente como TJ.
[3] Álvaro de Vita e Samuel Scheffler discordam das críticas de Nozick e Sandel contra Ralws.
[4] O segundo capítulo de Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação (2005:14-15), de Bentham, trata dos princípios contrários ao da utilidade. O raciocínio é o seguinte: se o princípio da utilidade é em todos os casos correto, conclui-se que todos aqueles diferentes dele são incorretos. Logo, para refutá-lo, basta mostrar essa diferença, que pode dar-se de duas maneiras: a) pelo fato de ser constantemente contrário; b) pelo fato de às vezes ser-lhe contrário, às vezes não, conforme o caso. O primeiro é o princípio do asceticismo. O segundo pode ser designado, diz Bentham, de princípio da simpatia ou antipatia. O princípio do asceticismo é definido da seguinte forma: “Por princípio do asceticismo designo aquele princípio que, como o da utilidade, aprova ou desaprova qualquer ação de acordo com a tendência que tem para aumentar ou para diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em jogo; isto, contudo, de maneira inversa ao que ocorre no princípio da utilidade, pois o do asceticismo aprova as ações na medida em que estas tendem a diminuir a felicidade da parte em questão, desaprovando-as na medida em que tendem a aumentá-la.” O princípio da simpatia e da antipatia, por sua vez, que teria maior influência em matéria de governo, é definido da seguinte maneira: “Por esta expressão entendo o princípio que aprova ou desaprova certas ações, não na medida em que estas tendem a aumentar ou diminuir a felicidade da parte interessada, mas simplesmente pelo fato de que alguém se sente disposto a aprová-las ou reprová-las.”
[5] VITA, Álvaro de. Uma concepção liberal-igualitária de justiça distributiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, nº. 39, p. 52.
[6] Mesmo em Bentham é possível encontrar certa preocupação com a igualdade.
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