A PRISAO PREVENTIVA PARA A GARANTIA DA ORDEM PUBLICA NA LEI 12.403/11 - BOLETIM IBCCRIM DE DEZEMBRO DE 2011 14.12.11
A prisão preventiva para a garantia da ordem pública na lei 12.403/11 Gabriel Bertin de Almeida
A recente Lei 12.403/11, que alterou o Código de Processo Penal, introduziu importantes novidades em nosso sistema de medidas cautelares. Quanto a uma dessas espécies de medidas, isto é, às prisões cautelares, as mudanças também foram significativas. O tema tem sido objeto de intenso debate.
Quanto à prisão preventiva, vê-se que foi finalmente elevada à posição de protagonista das prisões cautelares, passando a prisão em flagrante a ter papel pré-cautelar, como já defendiam, há muito, boa parte da doutrina e da jurisprudência. Aliás, a possibilidade de sobrevida da prisão em flagrante, antes de julho de 2011, por tempo indeterminado, sem sua conversão em preventiva (e, portanto, sem a análise da existência do periculum libertatis e demais requisitos desta espécie de prisão), acabava penalizando justamente os mais pobres (nem sempre efetivamente assistidos pelas defensorias públicas), já que aqueles com condições de contratar advogados, ao requerer sua liberação, acabavam obrigando os juízes e tribunais a tratarem da necessidade da manutenção da prisão. Atualmente, nos termos do art. 310, o juiz deve tomar uma entre três alternativas possíveis: relaxar o flagrante, convertê-lo em preventiva ou conceder a liberdade provisória. Não há mais a quarta hipótese, tão comum na prática forense: a manutenção do sujeito preso indefinidamente, deixado no limbo, até que alguém reclamasse.
Voltando à preventiva, percebe-se que houve sensível modificação no art. 313. Em seu inciso primeiro, está prevista a necessidade de que o crime seja doloso e punido com pena privativa de liberdade máxima superior a 04 anos. Antes, era possível a prisão nos crimes dolosos punidos com reclusão, seja qual fosse a quantidade de anos previstos como pena. A mudança reflete elementar juízo de razoabilidade e proporcionalidade, pois o acusado de crime com pena máxima de até 04 anos muito provavelmente não será encarcerado ao final do processo, seja porque terá direito a regime aberto, seja porque é possível, em tese, a substituição da privação de liberdade por restrição de direitos, nos termos do art. 44 do Código Penal. Se assim não fosse, o processo passaria a ser mais gravoso ao acusado do que a própria pena, o que evidentemente não se pode admitir.
Nesse novo contexto, crimes como furto, receptação, homicídio culposo, entre muitos outros, não permitem, como regra, a prisão preventiva, salvo se o acusado já tiver sido condenado definitivamente por outro crime doloso (art. 313, inc. II). Há ainda a possibilidade de prisão, independentemente da pena prevista, quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
O parágrafo único do art. 313, por sua vez, inovou e criou novas hipóteses de cabimento da preventiva (quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação), visivelmente desnecessárias, pois que já eram contempladas pela prisão temporária (art. 1º, II, da Lei 7.960/89).
O art. 312, caput, porém, infelizmente não sofreu modificação. Interpretando-o literalmente, a prisão continua cabível como medida de garantia da ordem pública, da ordem econômica, para a conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal. Sobretudo quanto à famigerada “ordem pública”, perdeu o legislador uma grande chance de evitar novas discussões sobre a prisão nessa hipótese. Como se sabe, é esse o requisito legal mais incompreendido e controverso de todo o sistema brasileiro de prisões cautelares.
Para além da manutenção do caput, criou o legislador um perigoso e desnecessário parágrafo único: “A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares”. Perigoso porque sua redação pode sugerir, para algum desavisado, uma medida natural, automática, decorrente do simples descumprimento de outras cautelares. Desnecessário porque o art. 282, § 4º, cumpre, com mais propriedade, a função pretendida pela lei, isto é, a de deixar claro que a prisão é a ultima ratio. Da leitura deste último dispositivo percebe-se o caráter excepcional da prisão preventiva, cabível em situações graves, que não podem ser tuteladas por nenhuma outra medida, e desde que ponderadas e justificadas cautelosamente suas hipóteses de cabimento.
De todo modo, apesar da manutenção da velha redação do caput do art. 312, sobretudo porque mantida a hipótese de prisão para a garantia da “ordem pública” (e da ordem econômica), é possível, nessa questão específica, apontar uma novidade na atual redação do Código de Processo Penal, que não tem sido objeto de devida reflexão. Trata-se da prudente previsão, nos incisos do art. 282, dos requisitos gerais das medidas cautelares. A redação é a seguinte: “Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”.
Como se vê, a partir de julho de 2011, todas as “medidas cautelares previstas neste Título”, inclusive a prisão preventiva do art. 312 e todas as novas medidas do art. 319, passaram a ter os requisitos gerais acima mencionados (art. 282, I e II, CPP). A prisão preventiva possui ainda seus requisitos específicos, previstos nos arts. 312 e 313 do mesmo Código.
Porém, quanto à prisão ora em discussão, a análise sistemática dos arts. 282, I, e 312 mostra uma discrepância, uma falta de sintonia entre eles. Ambos falam em cabimento da medida para a eficiente aplicação da lei penal e para a conveniência da instrução criminal (ou para a investigação antecedente). Essas duas hipóteses clássicas dizem respeito, como se sabe, à possibilidade de fuga e à possibilidade do investigado ou acusado intervir deleteriamente na investigação ou na instrução penal, respectivamente. A terceira hipótese é a problemática. Enquanto o art. 282, I, fala do cabimento das medidas para “evitar a prática de infrações penais”, o art. 312 fala em prisão para a “garantia da ordem pública” (ou econômica). Esta é a discrepância.
Utilizar uma medida cautelar para evitar a prática de crime é algo bem diferente de sua utilização para garantir-se a tal ordem pública. A primeira hipótese é bem mais clara e, ainda, menos abrangente. Quando se fala em prisão preventiva para a garantia da ordem pública, os juízes e tribunais utilizam diversos fundamentos, sendo comuns os seguintes: o clamor público, a gravidade do crime, a necessidade de acautelar-se o meio social, a finalidade de restaurar a credibilidade da justiça, entre outras. Não raro tais expressões aparecem juntas. Porém, é sabido que
estes fundamentos não têm acolhida pacífica em nossos tribunais. Muito ao contrário, como já tivemos oportunidade de argumentar, os tribunais, sobretudo os superiores, em regra, rejeitam a prisão nessas hipóteses, por considerarem inexistir motivo cautelar efetivo.(1) Situações de falta de tranquilidade social, decorrentes de crimes graves e da falta de confiança no sistema judiciário como um todo, não podem embasar decreto de prisão preventiva. Esse é o entendimento do STF há mais de uma década, que continua em plena vigência: “Prisão preventiva – Inadmissibilidade se ausente a demonstração, em concreto, do periculum libertatis do acusado. Irrelevância da gravidade abstrata do crime imputado, ainda que qualificado de hediondo, da reprovabilidade do fato e do conseqüente clamor público”.(2) Ou, mais recentemente: “A gravidade do crime e o clamor social não servem à decretação da prisão cautelar”.(3)
E ainda: “2. É certo que, para condenar penalmente alguém, o órgão julgador tem de olhar para trás e ver em que medida os fatos delituosos e suas coordenadas dão conta da culpabilidade do acusado. Já no tocante à decretação da prisão preventiva, se também é certo que o juiz valora esses mesmos fatos e vetores, ele o faz na perspectiva da aferição da periculosidade do agente. Não propriamente da culpabilidade. Pelo que o quantum da pena está para a culpabilidade do agente assim como o decreto de prisão preventiva está para a periculosidade, pois é tal periculosidade que pode colocar em risco o meio social alusivo à possibilidade de reiteração delitiva (cuidando-se, claro, de prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública). 3. Não se acha devidamente motivado o decreto de prisão que, quanto à ordem pública, sustenta risco à credibilidade da justiça e faz do clamor público fundamento da custódia preventiva. É que tais fundamentos não se amoldam ao balizamento constitucional da matéria”.(4)
Assim, segundo esse entendimento, apenas outro fundamento, isto é, a periculosidade do agente, fundado na prevenção especial negativa, é motivo idôneo da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, já que apenas nessa hipótese o chamado periculum libertatis se faz presente. Nesse caso, a inocuização, isto é, a prisão, teria caráter instrumental, impedindo que o agente perigoso praticasse novos crimes. Esse é o entendimento amplamente predominante nos tribunais superiores.
No contexto apresentado, nada mais natural, para adequar a lei à boa doutrina e à boa jurisprudência, e, sobretudo, para evitar a continuação da grave divergência, que a prisão preventiva deixasse de ser cabível “para a garantia da ordem pública” e passasse a caber tão somente “para evitar a prática de infrações penais”, justamente porque o sujeito é perigoso. Se o legislador perdeu uma grande chance de adequar o art. 312 aos moldes constitucionais, excluindo a expressão “para a garantia da ordem pública”, é certo que a redação dada ao art. 282, I, através de uma simples interpretação sistemática, pode resolver a questão.
Essa trivial interpretação tem apoio no princípio que diz que a espécie não pode ser mais abrangente do que o gênero. Assim como os gatos não abrangem um universo maior do que o dos felinos, ou como as lagostas não se sobrepõem aos crustáceos, a prisão cautelar não pode ser mais abrangente do que as medidas cautelares em geral. Muito menos a subespécie prisão preventiva para a garantia da ordem pública pode abranger um universo maior do que aquele formado por todas as medidas cautelares. Em outras palavras, se as medidas cautelares (gênero) cabem para evitar a prática de infrações penais, não poderia a prisão preventiva (espécie) continuar cabendo para garantir a ordem pública, na multiplicidade de fundamentos que ainda encontramos, sobretudo nas instâncias inferiores, pois teríamos uma espécie se sobrepondo ao gênero, já que a segunda hipótese é sabidamente muito mais abrangente do que a primeira. Se é certo que uma medida cautelar não cabe para restaurar a credibilidade da justiça, ou em razão da gravidade do crime ou do clamor público, porque a prisão caberia nessas hipóteses?
Assim, ou interpreta-se sistematicamente o art. 312, em conformidade com o art. 282, I (que não só o antecede, mas que também lhe impõe limites, pois traz normas gerais), para que só se admita a prisão preventiva para a garantia da ordem pública com o fim específico de evitar novos crimes, ou continuamos tratando o Direito como uma ciência menor, alheia aos princípios mais gerais e universais do conhecimento humano, solidificados na história.
NOTAS
(1) ALMEIDA, Gabriel Bertin de. Afinal, quando é possível a prisão preventiva para a garantia da ordem pública?, : Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 44, São Paulo: RT, jul.-set./2003, p. 71-85.
(2) STF, Recurso Ordinário em HC 79.200-6-BA, 1ª T., j. 22.06.1999, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
(3) STF, HC 99.072-PI, 2ª T., j. 08.09.2009, rel. Min. Eros Grau.
(4) STF, HC 102.065-PE, 2ª T., j. 23.11.2010. rel. Min. Ayres Britto.
Gabriel Bertin de Almeida
Mestre e Doutor em Filosofia pela USP.
Professor de Direito Penal e Processual Penal na PUC/PR.
Membro do IBCCRIM e do IDDD.
Advogado.
A prisão preventiva para a garantia da ordem pública na lei 12.403/11
Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 19, n. 229, p. 14-15-16, dez., 2011.
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