A JURISPRUDÊNCIA DO STJ SOBRE A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES POR DÚVIDAS TRIBUTÁRIAS E A FORMAÇÃO DO POLO PASSIVO DAS AÇÕES PENAIS NOS CRIMES FISCAIS 15.04.13
A jurisprudência do STJ sobre a responsabilidade dos administradores por dívidas tributárias e a formação do polo passivo das ações penais nos crimes fiscais Gabriel Bertin de Almeida
Fora da esfera criminal, quando se trata da cobrança de tributo devido, via execução fiscal, o Superior Tribunal de Justiça, há vários anos, consolidou o entendimento de que o simples inadimplemento da obrigação tributária não enseja a responsabilidade do administrador.(1) Por outro lado, se comprovada a prática de atos com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatutos, o administrador responde pessoalmente, podendo a execução ser ajuizada (ou redirecionada) também contra ele, nos exatos termos do art. 135 do Código Tributário Nacional.(2) Assim, cabe à Fazenda demonstrar desde logo que o administrador praticou ato ilegal ou abusivo para poder executá-lo.
Porém, apesar da consolidação do entendimento supra, que ainda permanece vigente, o mesmo Superior Tribunal de Justiça passou a entender que os dados constantes da certidão de dívida ativa (CDA) influenciam a distribuição do ônus da prova do ato ilícito ou abusivo. Segundo tal entendimento, se o nome do sócio consta da CDA, é dele o ônus da prova de que não houve qualquer infringência à lei, ao contrato etc. Se, por outro lado, da CDA não constar seu nome, cabe ao Fisco:(3) “Basicamente, conquanto afirme entender que a responsabilidade do sócio-gerente ou administrador pelo crédito tributário pressupõe a prática de ato ilícito, o STJ admite um regime de presunção amparado exclusivamente naquilo que dispuser a CDA, o título executivo que ampara a cobrança em juízo da dívida ativa pela via da execução fiscal (arts. 2.º e 3.º, Lei 6.830/1980)”.(4)
Portanto, embora a convivência dos dois entendimentos jurisprudenciais gere certa perplexidade, pois o segundo esvazia parcialmente o primeiro, na medida em que impõe ao devedor, via embargos (para alguns também via exceção de pré-executividade), a prova do que não fez, é certo que a jurisprudência cível atribui a devida importância ao esclarecimento, ab initio, das condições em que alguém pode vir a responder judicialmente a uma execução fiscal.
Nesse contexto, pode-se afirmar com segurança que, em regra, não se pode incluir no polo passivo de execução fiscal sem a apresentação de prova pré-constituída, o administrador ou o sócio-gerente, salvo se a CDA trouxer o nome do administrador.
Na esfera penal, por sua vez, é sabido que o ajuizamento de ação penal pelo crime de sonegação fiscal depende da constituição definitiva do tributo e, consequentemente, do encerramento do procedimento administrativo fiscal, nos termos da Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal federal. Apesar desse “empecilho”, é sabido ainda que boa parte da jurisprudência admite a inclusão dos administradores em geral no polo passivo da ação penal, sendo suficiente que os estatutos ou contratos sociais prevejam os poderes respectivos. Ilustrativamente, veja-se mais longamente a seguinte decisão, representativa de um grande universo de julgados: “(...) É fato incontroverso que, à época dos fatos (que se estenderam durante todo o ano de 2001), os pacientes detinham participação no capital social da empresa (...). É certo também que na aludida alteração, promovida em 16 de novembro de 1992, pelos termos da cláusula 4.ª (f. 973), os dois pacientes passaram a assinar em nome da empresa (...). Vale dizer, a partir de então, ao menos formalmente, eles passaram a deter poderes de gerência e administração da empresa. (...) Logo, conclui-se que, à época dos fatos narrados na denúncia – ano de 2001 – os pacientes exerciam cargos de administração e gerência da empresa e presumivelmente tinham conhecimento das operações descritas na inicial e que visariam à prática de crime tributário. (...) Assim, a tese de que não haveria justa causa para a propositura da ação penal em face dos pacientes cai por terra, na medida em que formalmente eles detinham poderes gerenciais e de administração na empresa. Se tais poderes eram meramente formais e os pacientes jamais praticaram quaisquer atos de gestão, caberá a eles comprovar no curso da instrução, bem como a sua ignorância e não assentimento em relação à prática dos supostos atos ilícitos. (...) O argumento de que sujeitar os pacientes denunciados a um longo e dispendioso processo-crime por si só não autoriza o pretendido trancamento da ação penal. Incumbia aos acusados, então, na fase do art. 396-A do CPP, ao oferecer a resposta, tentar obstar o seguimento do feito, demonstrando a alegada falta de justa causa para a propositura da ação penal em face deles, mediante a comprovação de plano do concreto não exercício de quaisquer atos de administração, gestão ou gerência da empresa e afastando a presunção gerada pelos poderes a eles conferidos no contrato social. No entanto, ao oferecer a resposta preliminar, os pacientes limitaram-se a negar que tivessem praticado qualquer ato de gestão da empresa, dizendo que era o sócio majoritário – e já falecido – o único a exercer tal mister. Não apresentaram, contudo, nenhuma prova capaz de afastar a presunção gerada pelas disposições do contrato social que lhes conferiam poderes para assinar em nome da empresa. Não era necessário, portanto, que o Ministério Público ouvisse os pacientes ou outras testemunhas para confirmar se eles efetivamente praticavam atos de gestão, ou ainda, em caso negativo, se tinham conhecimento dos fatos e com eles anuíram. Ou seja, incumbia aos pacientes desconstituir a presunção constituída em seu desfavor.”(5)
Assim, jurisprudência criminal tem admitido, contrapondo-se até mesmo à jurisprudência cível (mais rigorosa), a inclusão de qualquer administrador no polo passivo de ação penal pelo crime de sonegação fiscal ou similar, independentemente de apuração prévia para além do contrato ou do estatuto do efetivo exercício dos poderes de gestão. Na esfera criminal, segundo o entendimento supra, pouco importa também que o nome desse administrador conste ou não da CDA. A acusação, em qualquer hipótese, para efeito de sua admissão, não teria o ônus de provar a autoria. Ele que se vire para mostrar o que não fez.
Tal entendimento, apesar de corriqueiro, causa perplexidade, por ser visivelmente equivocado. Não se pode presumir, nem para efeito de admissão da ação, que aquele que conste como administrador tenha sonegado o tributo. Em que pese tal entendimento facilitar muito a vida do acusador, que acaba apresentando denúncia sem inquérito policial, simplesmente anexando o procedimento administrativo fiscal (quando muito, no inquérito, ouve-se o próprio administrador, que já sai indiciado), não é exagerado exigir que o investigador/acusador ao menos chame os sócios e testemunhas (como os funcionários da empresa), para perguntar quem tinha a responsabilidade pelo pagamento dos tributos. Sem que atos singelos como esses sejam realizados na fase investigativa, uma acusação por crime fiscal perpetrado pela pessoa jurídica, contra todos os sócios ou administradores, é, no mínimo, precipitada. Como já decidiu o Min. Celso de Mello, “não tem sentido, sob pena de grave transgressão aos postulados constitucionais, permitir-se que a discriminação da conduta de cada denunciado venha a constituir objeto de prova a ser feita ao longo do procedimento penal”.(6)
Como se sabe, é comum que sócios administradores atuem, sobretudo em grandes empresas, nas mais variadas funções (comercial, industrial, recursos humanos, logística etc.), não raro sem qualquer poder de determinar a política fiscal delas. Não se pode ajuizar uma ação, que, como se sabe, durará vários anos, para tentar se desvendar, apenas durante a instrução, quem era o responsável pelo pagamento do tributo e, ao final, simplesmente dizer algo como “sinto muito pelo incômodo, mas seu nome estava no contrato social”. Em outras palavras, com o perdão da obviedade, a investigação criminal é o foro adequado para o esclarecimento de tal fato, básico, elementar, pressuposto lógico do ajuizamento da ação penal. Excesso de serviço, celeridade, nada disso dispensa a obtenção, antes da denúncia, de informações tão básicas. Veja-se, sobre o tema, a doutrina: “Muitas vezes, contudo, trata-se de empresas familiares onde a gerência é de responsabilidade de um dos sócios e o outro apenas consta no contrato social, sem nenhuma participação ativa na empresa. Há, ainda, sócios elencados no contrato social como tendo poderes de gerência não exercidos efetivamente. (...) Não se quer com isso defender a tese de que para oferecimento da denúncia deve haver a certeza da participação do agente no delito, pois o princípio a ser observado em tal fase processual é o do in dubio pro societate, mas não é possível utilizar-se de tal expediente para deixar de investigar fatos típicos com a cautela necessária, mormente quando a autoria pode ser facilmente apurada, no mais das vezes, com a simples oitiva dos sócios, evitando, assim, que pessoas sejam processadas criminalmente sem qualquer necessidade, gerando inconvenientes tanto para os réus, quanto para a própria administração da Justiça”.(7)
Há, é verdade, ainda que sem uniformidade, precedentes do Superior Tribunal de Justiça,(8) entre outros tribunais, contrários a esse estado de coisas. Porém, insuficientes para coibir a avalanche de decisões que admitem a acusação por mera presunção, sem qualquer prova idônea preconstituída.
De todo modo, é sempre importante ressaltar que a inclusão de alguém no polo passivo de ação penal, submetendo-o ao longo processo que se põe à frente, causa grave constrangimento, comprometendo sua dignidade pessoal. Por isso, é injusto admitir o prosseguimento da ação para “melhor esclarecimento dos fatos”, suprindo-se a deficiência (ou inexistência) da investigação. A fase de recebimento da denúncia é crucial para a garantia de direitos fundamentais do indivíduo denunciado. “Mais do que uma peça processual que deve cumprir os requisitos do art. 41 do CPP, a denúncia é o instrumento por meio do qual o órgão julgador pode avaliar a efetiva necessidade de submeter o indivíduo às agruras do processo penal”.(9) Este é o motivo da prudência necessária nesse juízo de admissibilidade.
Notas
(1) Ilustrativamente: “O redirecionamento da Execução Fiscal para o sócio-gerente da empresa é cabível apenas quando demonstrado que agiu ele com excesso de poderes, infração à lei ou ao estatuto, ou no caso de dissolução irregular da empresa, não se incluindo o simples inadimplemento de obrigações tributárias” (STJ, AgRg no REsp 1308982/RS, 2.ª T., Rel. Min. Humberto Martins, j. 15.05.2012).
“É igualmente pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que a simples falta de pagamento do tributo não configura, por si só, nem em tese, circunstância que acarreta a responsabilidade subsidiária do sócio, prevista no art. 135 do CTN. É indispensável, para tanto, que tenha agido com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da empresa (EREsp 374.139/RS, 1.ª Seção, DJ de 28.02.2005)” (STJ, REsp 1101728/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 11.03.2009).
(2) “Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.”
(3) “A orientação da Primeira Seção desta Corte firmou-se no sentido de que, se a execução foi ajuizada apenas contra a pessoa jurídica, mas o nome do sócio consta da CDA, a ele incumbe o ônus da prova de que não ficou caracterizada nenhuma das circunstâncias previstas no art. 135 do CTN, ou seja, não houve a prática de atos ‘com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos’” (STJ, REsp 1104900/ES, 1.º Seção, Rel. Min. Denise Arruda, j. 25.03.2009).
“Constando na CDA o nome do sócio contra quem se pretende direcionar a execução, atribui-se-lhe o ônus de demonstrar a ausência de responsabilidade tributária, não se admitindo exceção de pré-executividade para esse fim” (STJ, Ag no REsp 1259367AM, 2.ª T., Rel. Min. Castro Meira, j. 08.05.2012).
(4) Gonçalves, Daniella Z.; Ribeiro, Fernando M. Art. 135, III, do CTN: a responsabilidade dos administradores por dívidas tributaries na jurisprudência. Revista do Advogado 118/35.
(5) TJPR, HC 909975-6, 2.ª Câm. Crim., Rel. Lilian Romero, j. 14.06.2012.
(6) STF, HC 86.879/SP, j. 21.02.2006.
(7) Oliveira, Luiz Renato. Reflexões sobre os crimes tributários. RBCCRIM 86/222, set.-out., 2010.
(8) “O simples fato de ser sócio ou administrador de empresa não autoriza a instauração de processo criminal por crimes praticados no âmbito da sociedade, se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da ação penal, a mínima relação de causa e efeito entre as imputações e a sua função na empresa, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal objetiva” (STJ, HC 17872, 5.ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, j. 27.09.2005). No mesmo sentido, ainda exemplificativamente: STJ, HC 32116, 5.ª T., Rel. Min. J. Arnaldo da Fonseca, DJ 06.12.2004, p. 342 e STJ, HC 86718, 5.ª T., Rel. Min. Félix Fischer, DJ 03.12.2007, p. 348.
(9) STF, Recebimento da Denúncia 3898-3, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 26.08.2009.
Gabriel Bertin de Almeida
Mestre e Doutor em Filosofia pela USP.
Professor de Direito Penal e Processual Penal nos cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito da PUC-PR.
Advogado.
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